terça-feira, 1 de maio de 2012

JOÃO W. NERY NO JÔ


Giowana Cambrone Araujo*
Marcio Sales Saraiva**

A entrevista no Programa do Jô Soares, exibida pela TV Globo no dia 30/04/12, foi com João W. Nery, um dos pioneiros transhomem no Brasil (nasceu biologicamente mulher e se tornou homem).
Ele mostrou na entrevista sua grande capacidade argumentativa já conhecida pelo “mundo trans” e com isso apresentou bons resultados que favorecem a visibilidade trans, lançando luz em pontos obscuros vividos por esta população. O autor de “Viagem Solitária”, seu último livro, apresentou-se como um intelectual bem articulado e que merece o respeito de tod@s.
O fato de ser um transhomem, algo pouco comum, além de ser um terreno social e cientificamente novo, até mesmo para o experimentado apresentador, deixou-o perceptivelmente receoso sobre “como” e “o que” perguntar para o João. O quadro da entrevista foi curto e deixou em nós uma sensação de que o Jô estava “pisando em ovos”, sem emitir muito suas próprias opiniões, como é de costume nesse talk show.

Em uma infeliz afirmação, o João Nery disse que o seu filho “infelizmente optou” em ser hetero. Primeiro que, a heterossexualidade não é nenhuma infelicidade, para quem vive bem nela. Segundo que, como bem sabemos e discutimos com a sociedade, é um equívoco atribuir à sexualidade humana a um mero jogo de escolhas/opções. Naturalmente, ao longo da vida, manifestamos - mesmo que no nosso íntimo - a nossa orientação sexual. O que nos cabe optar é somente a forma de vivenciá-la. E por ser uma questão de foro íntimo, pode-se viver como bem entender, sem necessariamente exibir ou exteriorizar a verdadeira orientação.

E é justamente esse equívoco que devemos evitar ao abordar as orientações sexuais, pois se não queremos cair no determinismo genético, não podemos precipitadamente abraçar a ideia de livre escolha diante de um equipamento sexual-cognitivo que nos limita. Nós somos o que podemos ser, não necessariamente o que gostaríamos, isso quer dizer que nossas escolhas são determinadas, limitadas, por diversos fatores. As escolhas humanas, incluindo sexualidade, sofrem múltiplos constrangimentos (sociais, psicológicos, econômicos etc.) que interferem na liberdade. Nosso contexto histórico-social (vivemos numa sociedade capitalista) já é uma fonte limitadora de escolhas.

Esse discurso de "livre escolha" é base dos ataques homofóbicos de Silas Malafaia, Bolsonaro e tantos outros que apregoam que a sexualidade é uma questão de escolhas, portanto, gays, lésbicas, trans e bissexuais podem ser “mudados”, “curados”, pois “bastaria fazer a escolha certa [ser heterossexual]” e se tais não fazem é porque eles são “doentes, safados, desviados, aliados do mal” e um monte de baboseiras mais.

Em outras palavras, se existe “livre escolha” sexual, os homofóbicos dirão que todas as sexualidades dissidentes representam um livre comportamento imoral e degradante socialmente. É por isso que devemos ter cuidado e evitar esse tipo de entendimento da sexualidade como mera opção.

Outra questão que merece muito cuidado é a tal despatologização do Transtorno de Identidade de Gênero (TIG, F64 no CID 10 – DSM IV), como é conhecido a transexualidade na nosografia psiquiátrica. Pode parecer um discurso correto, libertário e progressista, mas se a transexualidade não é um transtorno, o SUS então estaria desobrigado de cuidados nessa área e aqueles/as trans que dependem exclusivamente do sistema público de saúde poderiam ficar ainda mais excluídas, especialmente, aqueles/as que têm origem nas classes subalternas ou setores periféricos ao “mundo do trabalho”. Além disso, não existe um consenso, nem científico e nem dentro do campo LGBT, em torno da despatologização. Há muito debate pela frente, pois as duas características que diagnosticam o trasntorno ainda estão postas na ordem do dia:
           
1) Evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, que consiste do desejo de ser, ou a insistência do indivíduo de que ele é do sexo oposto (Critério A).

2) Esta identificação com o gênero oposto não deve refletir um mero desejo de quaisquer vantagens culturais percebidas por ser do outro sexo. Também deve haver evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou uma sensação de inadequação no papel de gênero deste sexo (Critério B). 




Em sua entrevista, João W. Nery também levantou a questão gravíssima dos ataques violentos, agressões e assassinatos ocorridos e/ou motivados pela homofobia/transfobia de alguns indivíduos e/ou grupos sociais. Foi ótimo quando ele falou do disque 100 e frisou a importância da sociedade civil denunciar comportamentos desrespeitosos, discriminatórios e/ou violentos.

Vale ressalvar que o livro “Viagem Solitária” é um trabalho autobiográfico, reunindo as experiências e vivências do autor, da sua transformação, do seu processo de aceitação pessoal, sofrimentos e relacionamento social-afetivo. Não é por acaso que João W. Nery é um referência no Brasil para todo o movimento LGBT e para tod@s que defendem a liberdade, a diversidade e os direitos humanos, mas isso não transforma-o em porta voz do movimento LGBT, apesar de todo seu maravilhoso engajamento e militância política nesse sentido.

Sendo assim, torcemos para que transexuais, bissexuais, travestis, gays, lésbicas, as “sexualidades dissidentes” da norma heterossexual, possam ganhar espaço midiático no Brasil e ampliar a luta política por direitos, igualdade e respeito. A cidadania é para todos e todas. Precisamos radicalizar a democracia em que vivemos nos marcos da ordem do capital.

* Graduada em Administração e Direito pelas Faculdades Inesc, especialista em Gestão Cultural, e pós-graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Gama Filho (UGF).

** Sociólogo graduado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com curso de Teologia básica pela PUC-Rio e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da UERJ.





Veja aqui a entrevista de 22 minutos no Programa do Jô

4 comentários:

  1. O Joao fez uma brincadeira sobre a sexualidade do filho, é um discurso irônico que visa descaracterizar as ferramentas do opressor. Eu uso este tipo de discurso o tempo todo não só em relação a sexualidade como a gênero e raça e o considero absolutamente legítimo.

    Sobre a despatologização, mais uma vez eu fico com o Joao. Os melhores centros de atentimento na atualidade são justamente aqueles que não seguem os protocolos do CID e do DSM, como o ambulatório de TT aqui em São Paulo. Outra, os protocolos médicos nos centros de atendimento no país são tão restritos que excluem a esmagadora maioria das pessoas trans aqui no Brasil.

    Ao percebermos gênero não como uma dualidade binária rígida mas como um espectro de muitas possibilidades qualquer critério de patoloigização tende a patologizar não apenas a pessoas trans, mas a qualquer pessoa cuja expressão de gênero diverja daquela considerada aceitável ao que se considera como masculino ou feminino. Transtorno de Identidade de gênero é um diagnóstico estigmatizante e extremamente perigoso para qualquer destas pessoas de expressão não-binária.

    A campanha de despatologização luta pela exclusão do Transtorno de Identidade de gênero no DSM e reclassificação no CID, não mais de forma patologizante (o CID em si não cataloga apenas patologias, mas condições que possam requerer algum cuidado médico). E por fim, basta analizar a França onde apesar da despatoligização pessoas trans continuam tendo acesso a aos tratamentos quando e se precisarem.

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  2. Além disso vale a pena dar uma lida neste documento da WPATH sobre a proposta do novo DSM-V pela APA: http://www.wpath.org/documents/WPATH Reaction to the proposed DSM - Final.pdf

    O documento tem um tom de cordialidade política, mas levando em conta que a WPATH assumiu o propósito de "de-psychopathologisation of gender variance worldwide", a leitura é bem interessante.

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  3. Obrigado Aline, respondeu por mim. Além do mais, mulher grávida é também atendida pelo SUS gratuitamente e não me conste que seja uma doença.

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  4. João Nery e Aline Freitas;

    Obrigado pelas considerações e indicações, prometo que estou lendo/meditando sobre esse assunto.

    Farei ajustes no texto em alguns pontos.

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