sexta-feira, 2 de novembro de 2012

As polêmicas do PSOL/AP e a confusão criada pela mídia conservadora


É com imensa alegria que o povo de Macapá acordou no dia 29 de outubro. Depois de uma campanha marcada pela exposição de um programa democrático e popular e o enfrentamento do crime organizado encastelado na máquina municipal, a vitória da Coligação Unidade Popular representou um sopro de esperança de melhorias dias para os excluídos de nossa cidade.

Ao final do primeiro turno nossa candidatura obteve a confiança de 28% do eleitorado. Nosso adversário alcançou 40%. Para vencer no segundo turno seria necessário sermos muito eficientes em uma engenharia política que combinasse a busca de apoios à esquerda, mas que não colasse em nossa candidatura o desgaste do governo estadual do PSB e, ao mesmo tempo, neutralizasse e fracionasse uma provável coalizão conservadora em torno do atual prefeito.

Assim, no segundo turno tivemos a manifestação de apoio do PCdoB e do seu candidato Evandro Milhomen.

Recebemos apoio do candidato Davi Alcolumbre (DEM), mesmo que isso não tenha significado o apoio de seu partido. Muitos militantes do partido não sabem, mas a vice- prefeita atual é a presidente do Diretório Municipal do DEM e manteve-se fiel ao candidato adversário, assim como, o vereador reeleito deste partido.

Não existiu apoio do PSDB. Sua direção estadual está sob intervenção. O único deputado estadual do PSDB (JK) e o deputado federal Luis Carlos estavam no palanque e na coordenação de campanha de Roberto Góes. A nossa candidatura recebeu o apoio do ex-senador Papaléo e do presidente destituído do Diretório Estadual Jorge Amanajás. Este último está se filiando ao PPS.

Tivemos o apoio do vereador eleito pelo PTB Lucas Barreto, mas não tivemos manifestação formal do seu partido em apoio a nossa coligação. Na última semana tivemos o apoio decisivo do PSB.

Conforme já havíamos dito em nota anterior, não houve compromisso de composição no futuro governo com nenhum dos partidos ou segmentos partidários que conseguimos atrair para nossa candidatura neste segundo turno. Os partidos conservadores não terão participação na composição do futuro governo de unidade popular.

Admitimos que a nossa engenharia política pudesse ter sido mais bem construída internamente ao partido, dialogando com nossas instâncias nacionais e ouvindo ponderações, fato que gerou dúvidas sinceras e também ataques desleais, alguns dos quais foram ostensivamente utilizados pelo nosso adversário.


Esclarecemos também que em momento de empolgação pelos apoios recebidos de parte dos que naturalmente se alinhariam com nosso adversário houve menção às eleições de 2014 que permitiu interpretação errada em nossa militância de que haveria acordos futuros. Nosso partido não trabalha com qualquer possibilidade de alinhamento com partidos conservadores nas futuras eleições. Pelo contrário, a vitória em Macapá nos consolidou como um poderoso polo aglutinador da esquerda amapaense.

Aproveitamos para esclarecer que consideramos um erro ter declarado apoio ao candidato do PT em rio branco sem ter antes conversado com nossa direção local. Esta postura foi motivada pela necessidade de vencer o crime organizado naquele estado e pela repercussão positiva que este gesto teria nos possíveis apoios do PT em Macapá e em Belém.

Tanto em nossas entrevistas para a imprensa, quanto no discurso da festa da vitória, fizemos questão de reafirmar o caráter democrático e popular do futuro governo do PSOL em Macapá. A Frente unidade popular governará para toda a cidade, mas terá seu foco de atenção na inversão das prioridades e na incorporação participativa dos segmentos excluídos de nossa sociedade. Governaremos para os mais pobres com apoio dos movimentos sociais e todos os setores honestos e progressistas de nossa cidade.

Queremos que nosso partido, não apenas por sua representação local, seja partícipe da construção da primeira experiência de governo do PSOL em uma capital. Por isso, convidamos a Executiva Nacional a acompanhar o futuro governo de unidade popular, inclusive desde a transição e composição do secretariado.

Somos sabedores da enorme responsabilidade que pesa sobre nossas costas. E nos esforçaremos para fortalecer o projeto partidário e oferecer ao país um sopro de esperança em tempos de acomodação da esquerda brasileira.

Macapá, 01 de novembro de 2012

Senador Randolfe Rodrigues - PSOL/AP

Clécio Luis, prefeito eleito de Macapá e membro da Executivação Unidade Popular representou um sopro de esperança de melhorias dias para os excluídos de nossa cidade.
Ao final do primeiro turno nossa candidatura obteve a confiança de 28% do eleitorado. Nosso adversário alcançou 40%. Para vencer no segundo turno seria necessário sermos muito eficientes em uma engenharia política que combinasse a busca de apoios à esquerda, mas que não colasse em nossa candidatura o desgaste do governo estadual do PSB e, ao mesmo tempo, neutralizasse e fracionasse uma provável coalizão conservadora em torno do atual prefeito.
Assim, no segundo turno tivemos a manifestação de apoio do PCdoB e do seu candidato Evandro Milhomen.
Recebemos apoio do candidato Davi Alcolumbre (DEM), mesmo que isso não tenha significado o apoio de seu partido. Muitos militantes do partido não sabem, mas a vice- prefeita atual é a presidente do Diretório Municipal do DEM e manteve-se fiel ao candidato adversário, assim como, o vereador reeleito deste partido.
Não existiu apoio do PSDB. Sua direção estadual está sob intervenção. O único deputado estadual do PSDB (JK) e o deputado federal Luis Carlos estavam no palanque e na coordenação de campanha de Roberto Góes. A nossa candidatura recebeu o apoio do ex-senador Papaléo e do presidente destituído do Diretório Estadual Jorge Amanajás. Este último está se filiando ao PPS.
Tivemos o apoio do vereador eleito pelo PTB Lucas Barreto, mas não tivemos manifestação formal do seu partido em apoio a nossa coligação.
Na última semana tivemos o apoio decisivo do PSB.
Conforme já havíamos dito em nota anterior, não houve compromisso de composição no futuro governo com nenhum dos partidos ou segmentos partidários que conseguimos atrair para nossa candidatura neste segundo turno. Os partidos conservadores não terão participação na composição do futuro governo de unidade popular.
Admitimos que a nossa engenharia política pudesse ter sido mais bem construída internamente ao partido, dialogando com nossas instâncias nacionais e ouvindo ponderações, fato que gerou dúvidas sinceras e também ataques desleais, alguns dos quais foram ostensivamente utilizados pelo nosso adversário.
Esclarecemos também que em momento de empolgação pelos apoios recebidos de parte dos que naturalmente se alinhariam com nosso adversário houve menção às eleições de 2014 que permitiu interpretação errada em nossa militância de que haveria acordos
futuros. Nosso partido não trabalha com qualquer possibilidade de alinhamento com partidos conservadores nas futuras eleições. Pelo contrário, a vitória em Macapá nos consolidou como um poderoso polo aglutinador da esquerda amapaense.
Aproveitamos para esclarecer que consideramos um erro ter declarado apoio ao candidato do PT em rio branco sem ter antes conversado com nossa direção local. Esta postura foi motivada pela necessidade de vencer o crime organizado naquele estado e pela repercussão positiva que este gesto teria nos possíveis apoios do PT em Macapá e em Belém.
Tanto em nossas entrevistas para a imprensa, quanto no discurso da festa da vitória, fizemos questão de reafirmar o caráter democrático e popular do futuro governo do PSOL em Macapá. A Frente unidade popular governará para toda a cidade, mas terá seu foco de atenção na inversão das prioridades e na incorporação participativa dos segmentos excluídos de nossa sociedade. Governaremos para os mais pobres com apoio dos movimentos sociais e todos os setores honestos e progressistas de nossa cidade.
Queremos que nosso partido, não apenas por sua representação local, seja partícipe da construção da primeira experiência de governo do PSOL em uma capital. Por isso, convidamos a Executiva Nacional a acompanhar o futuro governo de unidade popular, inclusive desde a transição e composição do secretariado.
Somos sabedores da enorme responsabilidade que pesa sobre nossas costas. E nos esforçaremos para fortalecer o projeto partidário e oferecer ao país um sopro de esperança em tempos de acomodação da esquerda brasileira.

Macapá, 1o de novembro de 2012
Senador Randolfe Rodrigues - PSOL/AP

Clécio Luis
prefeito eleito de Macapá e membro da Executiva

 

terça-feira, 1 de maio de 2012

JOÃO W. NERY NO JÔ


Giowana Cambrone Araujo*
Marcio Sales Saraiva**

A entrevista no Programa do Jô Soares, exibida pela TV Globo no dia 30/04/12, foi com João W. Nery, um dos pioneiros transhomem no Brasil (nasceu biologicamente mulher e se tornou homem).
Ele mostrou na entrevista sua grande capacidade argumentativa já conhecida pelo “mundo trans” e com isso apresentou bons resultados que favorecem a visibilidade trans, lançando luz em pontos obscuros vividos por esta população. O autor de “Viagem Solitária”, seu último livro, apresentou-se como um intelectual bem articulado e que merece o respeito de tod@s.
O fato de ser um transhomem, algo pouco comum, além de ser um terreno social e cientificamente novo, até mesmo para o experimentado apresentador, deixou-o perceptivelmente receoso sobre “como” e “o que” perguntar para o João. O quadro da entrevista foi curto e deixou em nós uma sensação de que o Jô estava “pisando em ovos”, sem emitir muito suas próprias opiniões, como é de costume nesse talk show.

Em uma infeliz afirmação, o João Nery disse que o seu filho “infelizmente optou” em ser hetero. Primeiro que, a heterossexualidade não é nenhuma infelicidade, para quem vive bem nela. Segundo que, como bem sabemos e discutimos com a sociedade, é um equívoco atribuir à sexualidade humana a um mero jogo de escolhas/opções. Naturalmente, ao longo da vida, manifestamos - mesmo que no nosso íntimo - a nossa orientação sexual. O que nos cabe optar é somente a forma de vivenciá-la. E por ser uma questão de foro íntimo, pode-se viver como bem entender, sem necessariamente exibir ou exteriorizar a verdadeira orientação.

E é justamente esse equívoco que devemos evitar ao abordar as orientações sexuais, pois se não queremos cair no determinismo genético, não podemos precipitadamente abraçar a ideia de livre escolha diante de um equipamento sexual-cognitivo que nos limita. Nós somos o que podemos ser, não necessariamente o que gostaríamos, isso quer dizer que nossas escolhas são determinadas, limitadas, por diversos fatores. As escolhas humanas, incluindo sexualidade, sofrem múltiplos constrangimentos (sociais, psicológicos, econômicos etc.) que interferem na liberdade. Nosso contexto histórico-social (vivemos numa sociedade capitalista) já é uma fonte limitadora de escolhas.

Esse discurso de "livre escolha" é base dos ataques homofóbicos de Silas Malafaia, Bolsonaro e tantos outros que apregoam que a sexualidade é uma questão de escolhas, portanto, gays, lésbicas, trans e bissexuais podem ser “mudados”, “curados”, pois “bastaria fazer a escolha certa [ser heterossexual]” e se tais não fazem é porque eles são “doentes, safados, desviados, aliados do mal” e um monte de baboseiras mais.

Em outras palavras, se existe “livre escolha” sexual, os homofóbicos dirão que todas as sexualidades dissidentes representam um livre comportamento imoral e degradante socialmente. É por isso que devemos ter cuidado e evitar esse tipo de entendimento da sexualidade como mera opção.

Outra questão que merece muito cuidado é a tal despatologização do Transtorno de Identidade de Gênero (TIG, F64 no CID 10 – DSM IV), como é conhecido a transexualidade na nosografia psiquiátrica. Pode parecer um discurso correto, libertário e progressista, mas se a transexualidade não é um transtorno, o SUS então estaria desobrigado de cuidados nessa área e aqueles/as trans que dependem exclusivamente do sistema público de saúde poderiam ficar ainda mais excluídas, especialmente, aqueles/as que têm origem nas classes subalternas ou setores periféricos ao “mundo do trabalho”. Além disso, não existe um consenso, nem científico e nem dentro do campo LGBT, em torno da despatologização. Há muito debate pela frente, pois as duas características que diagnosticam o trasntorno ainda estão postas na ordem do dia:
           
1) Evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, que consiste do desejo de ser, ou a insistência do indivíduo de que ele é do sexo oposto (Critério A).

2) Esta identificação com o gênero oposto não deve refletir um mero desejo de quaisquer vantagens culturais percebidas por ser do outro sexo. Também deve haver evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou uma sensação de inadequação no papel de gênero deste sexo (Critério B). 




Em sua entrevista, João W. Nery também levantou a questão gravíssima dos ataques violentos, agressões e assassinatos ocorridos e/ou motivados pela homofobia/transfobia de alguns indivíduos e/ou grupos sociais. Foi ótimo quando ele falou do disque 100 e frisou a importância da sociedade civil denunciar comportamentos desrespeitosos, discriminatórios e/ou violentos.

Vale ressalvar que o livro “Viagem Solitária” é um trabalho autobiográfico, reunindo as experiências e vivências do autor, da sua transformação, do seu processo de aceitação pessoal, sofrimentos e relacionamento social-afetivo. Não é por acaso que João W. Nery é um referência no Brasil para todo o movimento LGBT e para tod@s que defendem a liberdade, a diversidade e os direitos humanos, mas isso não transforma-o em porta voz do movimento LGBT, apesar de todo seu maravilhoso engajamento e militância política nesse sentido.

Sendo assim, torcemos para que transexuais, bissexuais, travestis, gays, lésbicas, as “sexualidades dissidentes” da norma heterossexual, possam ganhar espaço midiático no Brasil e ampliar a luta política por direitos, igualdade e respeito. A cidadania é para todos e todas. Precisamos radicalizar a democracia em que vivemos nos marcos da ordem do capital.

* Graduada em Administração e Direito pelas Faculdades Inesc, especialista em Gestão Cultural, e pós-graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Gama Filho (UGF).

** Sociólogo graduado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com curso de Teologia básica pela PUC-Rio e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da UERJ.





Veja aqui a entrevista de 22 minutos no Programa do Jô

domingo, 15 de abril de 2012

Há trinta anos, o eurocomunismo




www.gramsci.org

Há trinta anos, o eurocomunismo
Marco Mondaini - Agosto 2006
A expressão eurocomunismo não nasce das fileiras do movimento comunista, mas sim das páginas de um órgão da chamada imprensa burguesa. De fato, ela aparece pela primeira vez no cenário político internacional em 26 de junho de 1975, num artigo escrito no periódico milanês Giornale Nuovo pelo jornalista Frane Barbieri, iugoslavo exilado na Itália desde o início dos anos setenta.

Com o novo termo, revelava-se a preocupação em definir de forma mais precisa a crescente confluência existente entre alguns partidos comunistas da Europa Ocidental, em torno de uma série de princípios capazes de construir uma concepção de sociedade socialista apropriada aos países europeus, marcados pela existência de um capitalismo desenvolvido com uma economia de mercado razoavelmente sólida.

Na verdade, pensava-se com isso na identificação de certos partidos comunistas europeus ocidentais que cogitavam a possibilidade concreta de afirmação de uma concepção de socialismo alternativa frente ao socialismo realmente implementado na União Soviética e nos seus países satélites do Leste europeu, um socialismo caracterizado pela presença de um Estado fortemente centralizado e duplamente controlador – dirigista no campo socioeconômico e despótico no campo político-ideológico.

Então, as elaborações particulares realizadas por estes partidos comunistas do Ocidente europeu – as quais giravam ao redor da busca independente de uma série de “vias nacionais” ao socialismo – acabam por convergir para a afirmação de uma proposta de dimensões bem maiores, isto é, uma via que contemplasse uma parte significativa do continente europeu, uma “via européia” ao socialismo. Tal via teria seu ponto de encontro na localização de “um objetivo político de transição ao socialismo”, ou melhor, “no aprofundamento da dimensão democrática da temática de transição” [1].
Em outras palavras, a “via européia ao socialismo”, ou seja, o eurocomunismo, resultou da ampliação do consenso inicialmente formulado em torno, por um lado, da necessidade de uma escolha autônoma pelos partidos comunistas do caminho para o socialismo a ser seguido, e, por outro lado, da opção pela idéia de que socialismo e democracia se auto-implicavam como que numa relação umbilical, devendo estabelecer entre si uma relação de consubstancialidade [2].

Dessa forma, no eurocomunismo, a premissa de que a experiência da Revolução Russa de outubro de 1917 não poderia ser transposta para um grande número de países – em especial para aqueles países economicamente desenvolvidos do mundo capitalista – deveria desaguar obrigatoriamente na “possibilidade teórica de uma transição bastante prolongada, de um período de transição para o socialismo que não seria nem rápido, nem dramático, nem resolvido pela tomada do poder [...] ”. Assim, neste tipo de transição, levada a cabo através da conquista da hegemoniapor partidos e movimentos identificados com a classe operária, seria possível “prever um longo período (de transição ao socialismo) marcado pelos fluxos e refluxos, como ocorre no desenvolvimento do capitalismo”, sem se atravessar uma situação revolucionária do tipo insurrecional, mas sim um grande intervalo de lutas democráticas [3], numa inquestionável aproximação em relação à estratégia reformista da socialdemocracia européia [4].

Ora, a proposição de um socialismo decididamente enraizado nos princípios e valores da democracia, da liberdade e do pluralismo (dissidente em relação ao entendimento da revolução socialista como movimento insurrecional) era um fato que incomodava tanto os soviéticos quanto os norte-americanos: os primeiros, pelo temor de que uma dissidência socialista democrática se alastrasse pelos países do socialismo real no Leste europeu; os segundos, pelo medo de que se configurasse um forte movimento renovador nos partidos de esquerda do Oeste europeu [5].

No período em questão, a Era de Ouro do capitalismo, iniciada com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, começava a ser revertida em função da irrupção do primeiro choque do petróleo ocorrido no ano de 1973. A partir deste momento, as políticas econômicas intervencionistas de orientação keynesiana, que sustentavam teoricamente o Estado de Bem-Estar Social (o Welfare State), começam a ser progressivamente ultrapassadas pelo discurso do Estado mínimo e do mercado auto-regulável, patrocinado pela onda conservadora da doutrina neoliberal.

No plano estritamente político, em meados dos anos setenta, novos ventos de liberdade voltaram a soprar sobre o continente europeu, varrendo do mapa três regimes ditatoriais que insistiam em se fazer presentes numa Europa que reconquistara a democracia, em 1945, com a derrota dos regimes nazistas e fascistas, mas que se via ainda em meio às determinações geopolíticas da Guerra Fria entre Oeste capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e Leste comunista, encabeçado pela União Soviética, um conflito visto de forma maniqueísta como a luta entre o Bem e o Mal.

Assim, no decorrer de 1974, de uma parte, a ditadura salazarista em Portugal (no mês de abril) e o regime dos coronéis na Grécia (no mês de julho) são derrubados, restabelecendo as liberdades perdidas respectivamente nos anos vinte e sessenta. De outra parte, em 1975, com a morte do general Francisco Franco, a Espanha começa a realizar a transição pacífica rumo à democracia parlamentar, dando início à superação da traumática experiência da Guerra Civil, entre 1936 e 1939.
Já nos dois pólos centrais da Guerra Fria, a situação parecia pender para o campo comunista em função do duplo constrangimento enfrentado pelos Estados Unidos no período. De um lado, em 1974, o presidente Richard Nixon renuncia ao cargo em função do caso Watergate. De outro lado, em 1975, com a entrada dos vietcongues em Saigon, consolida-se a derrota da maior potência mundial na Guerra do Vietnam.

Na União Soviética, diferentemente, depois dos sucessivos conflitos estabelecidos com outros países comunistas (Polônia e Hungria, em 1956; Tcheco-Eslováquia em 1968; e China durante todos os anos sessenta), parecia que, sob a liderança de Leonid Brejnev, chegara-se a uma fase de estabilidade política e progresso econômico.

Dentro desse contexto mais ampliado, dois encontros foram responsáveis pelo nascimento oficial do eurocomunismo.

No primeiro, durante um comício realizado na cidade italiana de Livorno, em julho de 1975, os secretários-gerais do Partido Comunista Italiano (PCI), Enrico Berlinguer, e do Partido Comunista Espanhol (PCE), Santiago Carrillo, demonstram o caráter concreto da expressão cunhada por Barbieri para uma massa de militantes comunistas que tomara de assalto a cidade natal do PCI.

No segundo, em Roma, em novembro do mesmo ano, no decorrer de uma reunião entre Enrico Berlinguer e o secretário-geral do Partido Comunista Francês (PCF), Georges Marchais, a formação de um núcleo básico de partidos comunistas pertencentes à área capitalista avançada parece minimamente estabelecida, para que seja possível a explicitação das divergências existentes em relação à URSS e ao Partido Comunista da União Soviética (PCUS) – uma divergência que tinha o seu ponto nodal na defesa da idéia de que uma sociedade socialista não poderia deixar de trazer no seu âmago a manutenção das liberdades democráticas e a garantia do pluralismo, valores arduamente conquistados pela modernidade no curso das revoluções burguesas, entre os séculos XVII e XIX.

Junto a estes dois encontros, relevante para o desenrolar dos debates acerca do eurocomunismo foi a preparação e a conseqüente realização de uma conferência internacional realizada em junho de 1976, na cidade de Berlim, com a participação de vinte e nove partidos comunistas europeus.

Neste período, os comunistas italianos, espanhóis e franceses esboçam a construção de um pólo de partidos comunistas favoráveis a uma nova idéia de revolução, entendida como uma maneira renovada de edificação de um poder alternativo ao Estado e sociedade capitalistas.

Então, de uma maneira renovadora, é realizado um afastamento comum em relação à idéia de revolução como “um eventual golpe de mão de uma vanguarda decidida a tudo para penetrar na cidadela do poder, aproveitando das suas rachaduras”, em prol de uma outra concepção assentada na necessidade de estruturação de “umbloco histórico que se revele capaz de substituir gradualmente, e por via pacífica, a velha classe dirigente na direção do Estado, em seu todo econômico e político” [6].

Entretanto, o encontro entre PC italiano, PC espanhol e PC francês, em meados dos anos setenta, não deve ser compreendido como uma espécie de “triângulo harmônico”, baseado num consenso integral e generalizado, no qual a concepção de socialismo democrático e pluralista, por um lado, e o posicionamento crítico em relação às orientações emanadas de Moscou, por outro lado, encontravam-se igualmente desenvolvidos, lastreados historicamente de maneira idêntica.

Pelo contrário, o rápido esgotamento da renovadora experiência eurocomunista deveu-se, em boa medida, à falta de sintonia existente entre os tempos de maturação de um projeto socialista democrático no interior de cada um dos três partidos comunistas, ou, dizendo de outra maneira, à ausência de sincronia histórica no árduo esforço de distanciamento em relação ao projeto comunista de matriz terceiro-internacionalista e ao seu embasamento teórico marxista-leninista.

Mas, antes de chegar aos desencontros responsáveis pelo seu ocaso, faz-se necessário trilhar a trajetória dos encontros iniciais realizados entre os eurocomunistas, isto é, os pontos centrais do projeto durante a sua fase ascendente, quando os elementos em comum prevaleciam sobre as fontes de discórdia.
I
No primeiro encontro realizado entre Enrico Berlinguer e Santiago Carrillo, em julho de 1975, é emitida uma declaração comum que sai em defesa da tese de que, para os comunistas italianos e espanhóis, na “concepção de um avanço democrático ao socialismo, na paz e na liberdade, se exprime não uma atitude tática, mas um convencimento estratégico”, uma concepção que teria vindo à tona sob as condições históricas específicas dos países situados no continente europeu ocidental [7].

Nestes países, sublinha-se na declaração comum dos comunistas italianos e espanhóis, o socialismo somente pode ser desenvolvido através da “realização plena da democracia”, compreendida como:
[...] afirmação do valor das liberdades pessoais e coletivas e da sua garantia, dos princípios do caráter laico do Estado, da sua articulação democrática, da pluralidade dos partidos em uma livre dialética, da autonomia do sindicato, das liberdades religiosas, da liberdade de expressão, da cultura, da arte e das ciências [...] [8].
No que diz respeito especificamente ao campo econômico, é realizada a defesa de uma solução socialista voltada para “um alto desenvolvimento produtivo”, assegurado “por uma política de programação democrática fundada na coexistência de várias formas de iniciativa e de gestão pública e privada” [9].

Concluindo a declaração comum, é feita a afirmação de que ambos os partidos “elaboram em plena autonomia e independência a sua política interna e internacional”, numa clara referência à União Soviética e ao seu partido comunista [10].

Já a declaração comum elaborada em função do encontro realizado, em novembro de 1975, entre Enrico Berlinguer e Georges Marchais, parte do princípio comum de que apenas “uma política de profundas reformas democráticas” poderá levar a democracia a se desenvolver na direção do socialismo [11]. E, aqui, ocorre um avanço de ordem qualitativa em relação à declaração firmada pelos comunistas italianos e espanhóis - uma superação realizada em função da apresentação de um número bem mais ampliado de elementos que caracterizariam, de maneira necessária, a concepção socialista e democrática almejada pelos comunistas italianos e franceses.

Isto, ao se considerar “a marcha para o socialismo e a edificação da sociedade socialista” como um processo levado a cabo “nos quadros de uma democratização contínua da vida econômica, social e política”, ou seja, através do entendimento de que “o socialismo constituirá uma fase superior da democracia, realizada no modo mais completo”. Neste sentido, “todas as liberdades, fruto das grandes revoluções democrático-burguesas ou das grandes lutas populares deste século, que tiveram à sua frente a classe operária, deverão ser garantidas e desenvolvidas”:
[...] isto vale para a liberdade de pensamento e de expressão, de imprensa, de reunião e associação, de manifestação, para a livre circulação das pessoas no interior e no exterior, a inviolabilidade da vida privada, as liberdades religiosas, a total liberdade de expressão das correntes e de toda opinião filosófica, cultural e artística [...] [12].
Ademais, é realizado um decisivo pronunciamento em nome da “pluralidade dos partidos políticos, pelo direito à existência e atividade de partidos de oposição, pela livre formação e possibilidade da alternância democrática das maiorias e minorias, pelo caráter laico e o funcionamento democrático do Estado, pela independência da justiça”, além da defesa da “livre atividade e autonomia dos sindicatos” [13].

Outrossim, a reforçar a adesão dos comunistas italianos e franceses à vida democrática em seus países encontra-se a assertiva, já feita na declaração de italianos e espanhóis, de que o respeito ao conjunto das instituições democráticas deve ser tratado como uma questão de princípio, e não como apenas um instrumento de ordem tática.

Entretanto, se é visível o avanço da declaração franco-italiana quando da discussão dos nexos existentes entre socialismo e democracia, nos marcos da defesa da garantia das liberdades individuais e coletivas, o mesmo não se dá no momento em que o texto da declaração adentra o espaço especificamente econômico [14]. Aqui, o retrocesso não é menos perceptível, ao se realizar a defesa da idéia de que “uma transformação socialista pressupõe o controle público sobre os principais meios de produção e de troca”, num claro passo atrás de teor estatizante – muito próximo da organização econômica típica das sociedades do socialismo realmente existente – frente à proposta ítalo-espanhola pautada na necessidade de uma economia mista, aberta à coexistência de empresas públicas e privadas [15].

Por fim, os comunistas italianos e franceses reforçam aquilo que havia sido afirmado inicialmente na declaração conjunta de italianos e espanhóis: a necessidade do respeito pelo “princípio da autonomia de cada partido”, ou seja, a exigência da não ingerência de quaisquer partidos ou Estados (leia-se: Partido Comunista da União Soviética e União Soviética) nos desenvolvimentos teóricos e nas opções políticas realizados pelos demais partidos comunistas, tanto no campo oriental como no ocidental – fato que assinalava abertamente a vontade dos três partidos eurocomunistas de implementar livremente a busca por novos caminhos, a serem seguidos na luta pela construção de uma sociedade socialista e democrática.

Entretanto, junto à explicitação do desejo de garantia de liberdade em relação à URSS e ao PCUS, não deixou de se fazer presente com similar ênfase, nesta segunda declaração comum, a afirmação de que “deve ser garantido o direito de todo povo decidir de maneira soberana o próprio regime político e social”, cabendo a todos aqueles que se batem pela expansão da democracia no mundo “a necessidade de lutar contra a pretensão do imperialismo estadunidense de ingerir-se na vida dos povos”.

Assim, a tomada de distância frente aos soviéticos não pode ser minimamente encarada como uma aproximação desprovida de crítica em relação aos Estados Unidos, mas sim como a apresentação de um esboço de projeto pautado, por um lado, pela disposição de resgatar a capacidade européia de se colocar à frente das transformações sociais e políticas realizadas desde o início da modernidade, e, por outro lado, pelo objetivo de fazer voltar a valer os direitos à soberania dos Estados nacionais e à autodeterminação dos povos, direitos tão fortemente atacados por Estados Unidos e União Soviética no decorrer do século XX, em especial desde o início do conflito bipolar entre os dois países, com a Guerra Fria.

Na verdade, a perspectiva então apresentada pela declaração comum observava na “coexistência pacífica” e “na gradual superação e dissolução dos dois blocos militares”, encabeçados pelos Estados Unidos e pela União Soviética, não apenas “a única alternativa para uma guerra exterminadora”, mas também “o terreno mais favorável para a luta contra o imperialismo, pela democracia e pelo socialismo”. Em poucas palavras, a paz seria o terreno ideal para a superação do capitalismo e para a construção de uma nova sociedade [16].

A fim de que se aprofunde a compreensão do caráter das duas declarações, com toda a sua gama de identidades e diferenças, talvez seja esclarecedora a análise do discurso assumido pelos três partidos comunistas em meados da década de setenta, tomando-se como referência o relatório apresentado pelos seus três secretários-gerais (Berlinguer, Carrillo e Marchais) no decorrer dos congressos e conferências partidários ocorridos no biênio 1975/1976, já que os mesmos se desenrolaram exatamente em meio ao processo de elaboração das declarações conjuntas.
II
1) Berlinguer e o XIV Congresso do PCI – março de 1975


Num congresso marcado, no plano político interno, pela afirmação da estratégia do “compromisso histórico” com a Democracia Cristã (sem a exclusão dos socialistas) lançada no ano de 1973, e, no plano político externo, pela apresentação da proposta de formação de um “governo mundial” baseado no objetivo de um novo impulso desenvolvimentista, fundado num sistema inovador de cooperação mundial, o secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, tornou explícitas as motivações que fizeram dos comunistas italianos os principais responsáveis, teórica e politicamente, pelo avanço do eurocomunismo em meados dos anos setenta.

Tendo como ponto de partida a defesa do posicionamento autônomo da Europa frente aos Estados Unidos e à União Soviética, Berlinguer apresentou no seu Relatório de abertura do XIV Congresso do PCI, em março de 1975 [17], um conjunto de reflexões essenciais ao aprofundamento dos nexos existentes entre socialismo e democracia no mundo contemporâneo, num dos momentos mais elevados de elaboração teórica realizados pela tradição política comunista italiana inaugurada por Antonio Gramsci, ainda entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.

O caráter indissociável existente entre socialismo e democracia no pensamento de Berlinguer e, por conseguinte, na linha política seguida pelos comunistas italianos no decorrer dos anos setenta apresenta-se no Relatório em questão de três maneiras particulares, não obstante os evidentes nexos existentes entre si.

Em primeiro lugar, ao se formular uma estratégia possível de transição do capitalismo ao socialismo que fosse capaz de conciliar o “respeito da legalidade democrática” ao exercício de pressões voltadas para o início da edificação de uma nova ordem social – radicalmente diversa da velha ordem social – ainda no tempo presente.

Entendido como uma revolução democrática e socialista (ou como a segunda etapa da revolução democrática e antifascista), tal processo seria exatamente o “nexo vivo e operante entre a ação imediata e a perspectiva do socialismo”, um processo de longo prazo no qual o rompimento da lógica do capitalismo dar-se-ia através do “funcionamento das instituições democráticas” e da garantia de “um clima civil na luta política” – clima propício para a transformação revolucionária do capitalismo através de uma série de reformas fortes, ou, dito de outra forma, por meio da “introdução de elementos de socialismo na estrutura do capitalismo”:
Nesta situação, a perspectiva geral que nós indicamos é aquela que chamamos de uma nova etapa da revolução antifascista, isto é, de uma nova fase de desenvolvimento da democracia, que introduza nas estruturas da sociedade, na distribuição da renda, nos hábitos de vida, no exercício do poder, na atuação de uma consciente direção do complexo e articulado processo de desenvolvimento econômico, alguns elementos próprios do socialismo [18].
Na verdade, o que Berlinguer propunha era o desenvolvimento de um processo que levasse “progressivamente à ultrapassagem da lógica dos mecanismos de funcionamento do sistema capitalista”, concomitantemente à “plena afirmação da função dirigente e nacional da classe operária e das outras classes trabalhadoras”, dentro dos limites da legalidade democrática instituída no pós-Segunda Guerra Mundial – uma estratégia fortemente enraizada na história do comunismo italiano, que o presidente de honra do PCI, Luigi Longo, chegou a denominar de “reformista revolucionária”.

Em segundo lugar, ao se defender a necessidade do fortalecimento do tecido democrático, entendido aqui como a articulação entre o desenvolvimento da democracia direta, participativa, e a democracia indireta, representativa, de maneira a não se estabelecer entre as duas expressões do jogo democrático uma relação antitética ou de exclusão. Em caso contrário, isto só viria a contribuir para a corrosão do tecido democrático, que se pretendia fortalecer por se constituir no terreno de luta ideal para a causa socialista, abrindo espaço para uma miríade de forças, da extrema-esquerda à extrema-direita, interessadas exatamente no enfraquecimento da tessitura democrática almejada pelos comunistas italianos.

Em terceiro lugar, ao se definir as características centrais imprescindíveis para a construção de um novo Estado socialista: a) a sua fundação no pluralismo político, com a defesa intransigente da pluralidade de partidos e de um sistema de autonomias; b) o seu caráter laico, não confessional e não ideológico; c) a sua negação de que a unidade da classe operária possa ser vista em termos de um partido único.

Com a apresentação destes três elementos centrais, Berlinguer deixava clara a opção realizada pelos comunistas italianos pelo respeito integral às liberdades civis e políticas, com o pleno direito a todos de se reunirem e divulgarem as suas causas, tornando inquestionável a forma democrática e republicana de apreensão do projeto socialista, sem qualquer espécie de concessão à tradição despótica da esquerda comunista, estivesse esta dentro ou fora do aparelho estatal.

2) Carrillo e a II Conferência Nacional do PCE – setembro de 1975


A primeira observação de peso realizada pelo secretário-geral do PCE, Santiago Carrillo, no relatório apresentado à II Conferência Nacional dos comunistas espanhóis, em setembro de 1975 [19], girou em torno da diferenciação existente entre duas espécies de internacionalismo revolucionário: o primeiro (antigo), definido pelo engajamento de cada partido comunista na defesa da União Soviética; o segundo (novo), caracterizado pela luta de cada partido comunista dentro da sua respectiva nação.

Ao distinguir estes dois tipos de internacionalismo e fazer uma evidente opção pelo segundo, Carrillo almejava afirmar que a independência de cada partido comunista dependia da sua capacidade de caminhar com as próprias pernas e não mais com aquelas da União Soviética. Isto, porém, sem recusar o papel decisivo desempenhado pela Revolução de Outubro de 1917, a União Soviética e os restantes países socialistas no processo revolucionário mundial, o que assinalava a tentativa de estabelecer uma ruptura com o velho internacionalismo proletário mantendo uma relação de continuidade indiscutível com o mesmo.

A mesma tentativa de caminhar por entre continuidade e ruptura pode ser visualizada na abordagem feita, em seguida, sobre a forma a ser assumida pelo processo revolucionário nos países da Europa capitalista economicamente avançada. Assim, se, por um lado, é apontada a possibilidade da ocorrência de “uma transformação socialista sem insurreição armada operária, sem guerra civil, sem ‘longas marchas’”, por outro lado, é indicado que esta possibilidade não deve ser confundida com a confirmação das teses reformistas socialdemocratas, pois, “sem a violência revolucionária que o reformismo socialdemocrático sempre negou”, a possibilidade mesma de uma revolução socialista não-insurrecional nos países europeus desenvolvidos seria inviável na conjuntura em curso naquele momento.

A crítica ao reformismo socialdemocrata, no entanto, não deveria excluir a necessidade de uma ampla aliança no campo das esquerdas voltada para a afirmação de uma via democrática ao socialismo, uma via revolucionária não-insurrecional que precisaria enfrentar o grande enigma de como transformar o aparelho de Estado capitalista a partir de um governo de orientação socialista – enigma que destruíra as esquerdas chilenas exatamente dois anos antes, em setembro de 1973.

A fim de se evitar a repetição da trágica experiência chilena, far-se-ia necessário que as forças de esquerda dessem início à conquista do poder do Estado antes mesmo da chegada ao governo, completando-a posteriormente a partir do próprio governo, diferentemente das situações em que uma revolução triunfa com a violência, destruindo pela raiz o velho aparelho estatal e suas classes sociais dominantes.

Por um lado, no plano econômico, este governo socialista deveria substituir a idéia de socialização radical dos meios de produção pela perspectiva de longo prazo de coexistência entre os setores público e privado, já que apenas por seu intermédio seria possível “alcançar um equilíbrio entre o ritmo das transformações e a elevação do bem-estar geral”.

Por outro lado, no plano político, o governo socialista deveria manter as instituições da democracia representativa (sufrágio universal, oposição legal e alternância de poder), complementando-a com formas de democracia direta, que permitissem a participação popular nos processos decisórios, dando forma a um autêntico regime de liberdade política.

Por fim, o secretário-geral do PCE sai em defesa de uma Europa dos trabalhadores, que fosse independente tanto dos Estados Unidos quanto da União Soviética, uma Europa capaz de fazer coincidir as conquistas das revoluções burguesas com as das revoluções socialistas, gerando uma democracia com dimensões autenticamente igualitárias, uma democracia capaz de ser estendida do plano estritamente político para aquele econômico e social, e na qual o povo tivesse o “direito de edificar livremente uma sociedade sem explorados e sem exploradores”.

3) Marchais e o XXII Congresso do PCF – fevereiro de 1976


No discurso proferido, em fevereiro de 1976 [20], no decorrer do XXII Congresso do PCF, o secretário-geral dos comunistas franceses, Georges Marchais, acabou por retomar alguns dos elementos centrais presentes nos relatórios congressuais apresentados por Enrico Berlinguer e Santiago Carrillo, respectivamente em março e setembro de 1975.

De todos estes elementos centrais, no entanto, uma posição de destaque é ocupada pelo entendimento do socialismo como pleno desenvolvimento da democracia – a democracia estendida até os seus limites – e não como o seu aniquilamento. O socialismo a ser conquistado na França deveria, pois, ser identificado com a “salvaguarda e a expansão das conquistas democráticas”, obtidas através das lutas do povo francês, devendo as liberdades formais ser defendidas e ampliadas, renovadas e restauradas na sua plenitude, nada podendo substituir a vontade das maiorias democraticamente expressas pelo sufrágio universal.

A diferenciar os três discursos, porém, encontram-se: a) um caráter classista inegavelmente mais acentuado nas reflexões acerca das relações entre socialismo e democracia; b) um número maior de ambigüidades ante a tradição comunista; e c) um papel mais preponderante do ideal coletivista na economia a ser erigida no futuro.

Em primeiro lugar, na afirmação inicial de que “liberdade e socialismo são inseparáveis”, a luta pela liberdade é vista como não podendo ser observada fora do plano da luta de classes, uma luta entre os que têm “uma necessidade vital de liberdade” (a classe operária) e os que não podem “mais suportar esta mesma liberdade” (a grande burguesia). Dessa forma, “a democracia e a liberdade são hoje o terreno de combate da luta de classe, da luta pela revolução”, pois seria impossível colocar-se “sobre a estrada da democracia sem pôr em questão o domínio do grande capital sobre a economia e sobre o Estado”.

Em segundo lugar, não é necessário um grande esforço para que sejam percebidas as idas e vindas em relação à tradição no discurso do líder comunista francês. Assim, ao mesmo tempo em que se declara o rompimento com o conceito de ditadura do proletariado e se afirma que a luta pelo socialismo na França seguirá uma via autônoma, diversa tanto daquela seguida pelos russos em 1917 como daquela outra seguida pelas chamadas democracias populares no pós-1945, reitera-se a fidelidade para com os princípios do marxismo-leninismo e do socialismo científico, além da afirmação de que a classe operária continua a ser a classe dirigente da revolução socialista, sendo o partido comunista a vanguarda a guiá-la durante o processo revolucionário.

Por fim, em terceiro lugar, continua-se a defender “a propriedade coletiva dos grandes meios de produção” como peça-chave de uma economia socialista que também se revestirá de outras formas de propriedade social, como a nacionalização, a municipalização, as cooperativas, etc.
***
Apresentados os pontos centrais das duas declarações fundadoras do eurocomunismo e os posicionamentos específicos das suas lideranças durante os congressos e conferências partidários ocorridos no período em questão, faz-se necessário trilhar os caminhos particulares que levaram os comunistas italianos, espanhóis e franceses a se encontrarem momentaneamente ao redor de um projeto socialista e democrático. capaz de incorporar – de uma maneira seletiva, não desprovida de ambigüidades e diversificada em cada um dos três PCs – determinados elementos daquilo que seria impensável nos anos mais duros da bolchevização dos partidos comunistas e da expansão da doutrina marxista-leninista.

Por um lado, a superação da estreita visão que reduzia a abordagem da questão democrática a uma opção de classe, isto é, a ultrapassagem da tradicional oposição entre democracia burguesa e democracia operária, na direção da renovadora concepção de democracia como uma finalidade, um objetivo estratégico, um valor universal.

Por outro lado, a identificação da garantia das liberdades individuais e coletivas como momento essencial de uma estratégia direcionada para a afirmação dos ideais socialistas, o que significava a aceitação de uma parte fundamental do patrimônio teórico do liberalismo político.
III
Os Partidos Comunistas italiano, espanhol e francês não chegaram aos ideais socialistas democráticos que embasaram o projeto eurocomunista trilhando o mesmo caminho. Mesmo não se excluindo, os impulsos iniciais que levaram cada um dos três partidos comunistas à estrada comum do eurocomunismo são de natureza distinta, fato que, segundo a hipótese aqui defendida, faz compreender a sua desagregação prematura antes mesmo do término dos anos setenta.

1) O PCI


A trajetória dos comunistas italianos, em primeiro lugar, deu-se através de um longo percurso de luta política e de reflexão teórica, permeado por graves tensões e não poucas disputas internas e ambigüidades, que tem seu início com a obra carcerária de Antonio Gramsci, nos anos da ditadura fascista, e seus desenvolvimentos, no pós-Segunda Guerra Mundial, com a busca de Palmiro Togliatti por um novo caminho ao socialismo.

Com Gramsci, os comunistas italianos começaram a vislumbrar, ainda nos anos mais duros da ditadura fascista, a possibilidade de uma nova forma de pensar e lutar pela implementação da revolução socialista, não apenas na Itália, mas também num conjunto de países capitalistas desenvolvidos, onde o Estado tornara-se ampliado, assumindo a forma de uma complexa relação entre “sociedade política” e “sociedade civil”. Com isso, o ideal revolucionário passa a se apresentar não mais como um evento insurrecional localizado num curto espaço de tempo (a “guerra de movimento”), mas sim como um processo ampliado realizado no decorrer de um largo período histórico (a “guerra de posição”). Isto, partindo-se da visualização da existência de dois tipos de realidade sociopolítica no mundo contemporâneo: a primeira, marcada pela prevalência dos instrumentos coercitivos de “dominação” sobre os meios consensuais de “hegemonia” (o “Oriente”); a segunda caracterizada pela existência de um equilíbrio entre “coerção” e “consenso” (o “Ocidente”) [21].

Com Togliatti, as reflexões gramscianas são retomadas e ampliadas sensivelmente na direção da construção de uma estratégia democrática de transição ao socialismo, denominada a partir dos anos em que foi secretário-geral do PCI, entre 1944 e 1964, de “via italiana ao socialismo”. Uma via responsável, em grande medida, pelo fato do partido de Gramsci ter se tornado o maior partido comunista do mundo ocidental, e que se fundava em dois conceitos centrais do pensamento togliattiano: a “democracia progressiva” (a idéia de um regime político responsável pela instauração do socialismo através de um longo período histórico, enxergado não como uma simples etapa a ser cumprida e logo depois descartada, mas como um processo de natureza permanente); e o “partido novo” (a concepção de um partido comunista de caráter nacional, amplo e de massa, voltado para a colaboração governativa e aberto à aliança orgânica com os socialistas) [22].

Sob o breve secretariado de Luigi Longo e, principalmente, a partir do momento em que Enrico Berlinguer assume a liderança do PCI, na virada dos anos sessenta aos anos setenta, os comunistas italianos enriquecem ainda mais as contribuições teóricas e políticas dadas por Gramsci e Togliatti, chegando ao ápice das reflexões acerca das relações estabelecidas entre socialismo e democracia.

Enfim, com Berlinguer, o Partido Comunista Italiano assume firmemente aquilo que ainda se encontrava incubado no pensamento de Gramsci e permeado de ambigüidades nos anos da direção de Togliatti: a afirmação de que o socialismo almejado – diversamente do que acontecia nos países do “socialismo até então realizado” – só pode ser entendido como o pleno desenvolvimento da democracia.

Isto, durante um período sombrio da história italiana, no qual o terrorismo vermelho da extrema-esquerda e o terrorismo negro da extrema-direita, com a cumplicidade de determinados setores do próprio aparelho estatal italiano, espalharam o medo pela península itálica, com o intuito de brecar de toda maneira a entrada dos comunistas italianos no governo do país, numa aliança com a Democracia Cristã de Aldo Moro.

Outrossim, como que a sintetizar o duro aprendizado realizado com as trágicas experiências da invasão das tropas do Pacto de Varsóvia, sob a liderança soviética, em 1956 e 1968, respectivamente na Hungria e na Tcheco-Eslováquia, o PCI berlingueriano aprofunda a crítica ao internacionalismo proletário pensado como defesa irrestrita da União Soviética e do seu partido comunista. Diferentemente deste entendimento, é levado a cabo o aprofundamento do conceito togliattiano de “policentrismo” (a noção de que não existe um guia único dentro do movimento comunista internacional, sendo o socialismo uma realização de caminhos freqüentemente diversos), até o ponto de se imaginar o desenvolvimento autônomo da revolução democrática e socialista no Ocidente, em particular na Europa capitalista, independentemente dos juízos negativos construídos pelos dirigentes soviéticos.

2) O PCE


Os comunistas espanhóis, por sua vez, também tiveram suas escolhas condicionadas pelo progressivo dissenso estabelecido em relação às posturas assumidas pelos soviéticos. Isto, pelo menos desde meados dos anos sessenta, quando o PCE ainda amargava a rigorosa clandestinidade imposta pelo regime franquista, a quem fazia uma determinada oposição desde a trágica derrota sofrida na Guerra Civil Espanhola, entre os anos de 1936 e 1939. Todavia, tal dissenso não foi acompanhado do mesmo trabalho de amadurecimento teórico empreendido pelos comunistas italianos, no decorrer de aproximadamente cinqüenta anos.

A lista de contratempos acontecidos entre os comunistas soviéticos e os comunistas espanhóis não é curta, tendo se acentuado gravemente na primeira metade dos anos setenta. De uma parte, em 1971, o PCUS chega a dar o seu apoio à formação do Partido Comunista Operário Espanhol, liderado pelo popular general da resistência antifranquista durante a guerra civil, Enrique Lister, expulso do PCE em 1970. De outra parte, em 1972, durante a realização do seu VIII Congresso, em Paris, o PCE aprova uma resolução tratando dos principais traços de uma futura Espanha socialista, na qual é feita a renúncia a toda e qualquer tentativa de imposição de uma filosofia oficial, junto à indicação de uma plena autonomia em relação a Moscou.

Na verdade, na década anterior, mais precisamente em junho de 1964, os comunistas espanhóis já haviam elaborado uma declaração de caráter inovador, na qual era feita a promissora defesa de uma linha política nacional e democrática, voltada para a conquista de um regime de transição entre o capitalismo monopolista de Estado e o socialismo, pensado nos marcos de um “longo período de duração”.

Neste contexto, a possibilidade de desenvolvimento em solo espanhol de uma revolução com liberdade e democracia já é observada como dependendo diretamente da coexistência de formas de propriedade sociais, nos setores fundamentais da economia, com formas de propriedade capitalistas, nos demais setores.

Em suma, o que se começava a prever ainda em meio aos anos sessenta era a necessidade de uma transição pacífica ao socialismo, baseada, por um lado, numa política de unidade ampla e articulada o suficiente para derrotar a ditadura franquista, e, por outro lado, na admissão da idéia de que em países como a Espanha a luta revolucionária dar-se-ia de maneira diversa daquela implementada na Rússia (1917), China (1949) e Cuba (1959).

Na passagem dos anos sessenta aos anos setenta, por diversas ocasiões, o próprio secretário-geral do partido, Santiago Carrillo, tornará explícita a opção democrática feita pelos comunistas espanhóis em 1964. Em 1968, saindo em defesa do pluralismo político e econômico, contra o partido único e os métodos burocráticos de gestão nos países socialistas. Em 1970, definindo a luta pela democracia como a primeira fase de um processo ininterrupto de luta pelo socialismo, e a ditadura do proletariado como a ampliação e desenvolvimento da democracia, e não como a abolição das liberdades políticas.

Como se pode observar, ao tentar conciliar via democrática e ditadura do proletariado, Carrillo e os comunistas espanhóis chegam ao VIII Congresso, em 1972, deixando claro o quanto era difícil romper completamente com as heranças teóricas e as tradições políticas responsáveis pela edificação do chamado movimento comunista internacional.

Apenas em 1975, quando da realização da II Conferência Nacional do PCE, a antinomia entre ditadura do proletariado e via democrática seria rompida em favor desta última. Então, no seu Manifesto-Programa, propõe-se como modelo político um “socialismo pluripartidário e democrático [...], um socialismo baseado na soberania popular expressa através do sufrágio universal”, entendido o pluralismo – nas palavras de Carrillo, alguns meses depois – “como o direito de uma oposição não socialista retornar ao poder, assim que reconquistar a maioria” [23].

3) O PCF


Os comunistas franceses, por seu turno, realizaram a sua opção pelo eurocomunismo muito mais em virtude de razões táticas de política interna do que como resultado de um amadurecimento teórico estratégico de longa data.

Na verdade, a determinar o novo caminho tomado pelo PCF encontrava-se, antes de tudo, o desejo de aproximação aos socialistas franceses, com o intuito de elaborar um programa comum para o governo da França capaz de romper com a hegemonia conquistada pelas forças conservadoras desde o término da Segunda Guerra Mundial, levando as esquerdas ao comando da nação.

Divulgado em julho de 1972, o programa comum para o governo da França acabou possibilitando um grande sucesso eleitoral, nos anos seguintes, para a coalizão de esquerda, formada por socialistas e comunistas: em primeiro lugar, nas eleições legislativas de 1973, com o avanço de 93 para 176 cadeiras no parlamento francês, o que quase desbancou a maioria da coalizão gaullista; em segundo lugar, nas eleições presidenciais de 1974, quando por muito pouco a candidatura unitária de François Mitterrand não sai vitoriosa frente à de direita de Valéry Giscard D´Estaing, na sucessão de Georges Pompidou.

De fato, não consistiria nenhuma espécie de exagero a afirmação de que, dos três PCs eurocomunistas, o francês era aquele que menor senso estratégico possuía no seu desenvolvimento renovador, tendo se aproximado dos comunistas italianos e espanhóis muito mais por necessidades de ordem tática do que em virtude de um consistente esforço teórico.

Em suma, o que contava para os comunistas franceses, acima de qualquer outra questão, era a necessidade de construção de uma sólida aliança eleitoral com o Partido Socialista Francês, que fosse suficientemente capaz de ultrapassar a direita gaullista [24].

Entretanto, o interesse de caráter tático-eleitoral existente por detrás da opção eurocomunista realizada pelos comunistas franceses não deve ser desprezado, pois foi por intermédio da sua luta pela união da esquerda em torno de um programa comum que, no decorrer do XXII Congresso do PCF, em fevereiro de 1976, foi tomada a decisão de retirar a noção de “ditadura do proletariado” do conjunto de objetivos a serem alcançados pelos seguidores do secretário-geral Georges Marchais
.
Além disso, não foram de pouco relevo os avanços críticos levados a cabo neste período. De uma parte, ao realizarem a substituição da expressão “internacionalismo proletário” por “solidariedade internacionalista”, com o intuito de assinalar a divergência em relação à tentativa soviética de dar continuidade à antiga estrutura centralizadora do movimento comunista internacional (Komintern e Kominform) através da realização de conferências internacionais dos partidos comunistas. De outra parte, ao tornarem explícitos a crítica aos atentados cometidos contra as liberdades individuais e coletivas nos países socialistas, e o questionamento em relação à substituição da luta de idéias pela censura ou repressão [25].

Dessa forma, ainda que impulsionados mais por questões de ordem tática do que por reflexões mais aprofundadas de natureza estratégica, os comunistas franceses conseguiram chegar ao entendimento de que o eurocomunismo não era nem “um novo centro, mesmo regional, do movimento comunista” ou “qualquer espécie de tribunal, erigindo-se em censor sistemático de outros partidos”, nem “uma ideologia ou uma linha política comum”, ou ainda “uma variante da socialdemocracia”. De fato, para o PCF, o eurocomunismo era “a aspiração dos trabalhadores ao socialismo emliberdade”, “uma via democrática e revolucionária em direção ao socialismo [...], na qual a classe operária desempenha um papel decisivo, através de uma manifestação sem precedentes de democracia” [26].

Ademais, com a adesão ao eurocomunismo, os comunistas franceses acabaram por completar um ciclo – um breve, mas enriquecedor ciclo, mesmo que permeado de um número considerável de incertezas e dubiedades –, iniciado em dezembro de 1968 com o Manifesto de Champigny, no qual o tema da transição ao socialismo é abordado através da fórmula da “democracia avançada”, tendo um momento de inflexão em novembro de 1974, no decorrer do XXI Congresso (extraordinário) do Partido Comunista Francês, quando Georges Marchais vai além do Manifesto de 1968 ao afirmar que, junto ao caráter democrático da via francesa ao socialismo, é preciso que existam diversas vias nacionais ao socialismo, aí incluída a “via francesa ao socialismo” – o “socialismo com as cores da França” [27].

Com isso, os comunistas franceses demonstraram ter levado em consideração – pelo menos em parte, no decorrer de quatro congressos partidários – as exigências de caráter democrático vindas à tona nos abruptos acontecimentos ocorridos nos anos de 1968 e 1974, nas mais distintas partes do continente europeu: do Leste comunista ao Oeste capitalista, do Oeste capitalista rico ao Oeste capitalista pobre.

A explosão estudantil no maio francês, que se espalharia por outras partes do planeta, contra todas as formas de autoritarismo – capitalista ou comunista – e a repressão levada a cabo pelas tropas do Pacto de Varsóvia contra a experiência libertadora da Primavera de Praga, no ano de 1968, junto à derrota das ditaduras na Grécia e em Portugal, em 1974, fizeram saber aos comunistas franceses que a manutenção de todas as liberdades democráticas deveria se tornar uma condição sem a qual nenhum projeto socialista poderia ser posto em prática de maneira efetiva, o que dava uma idéia da vontade de ratificar a disposição de fazer indissociável a luta pela democracia e a luta pelo socialismo, contra o inimigo comum representado pelo modo de produção capitalista e pela sociedade burguesa.
***
Aderindo ao eurocomunismo em tempos e com objetivos diferenciados, não era de se esperar que a união entre os comunistas italianos, espanhóis e franceses em torno do mesmo projeto fosse além da realização imediata de seus interesses particulares.

No entanto, pela falta de um esforço orgânico maior que resultasse no alinhamento teórico dos três PCs (única couraça capaz de proteger o eurocomunismo dos sucessivos ataques, internos e externos, que começava a sofrer), as circunstâncias da segunda metade dos anos setenta muito rapidamente evoluíram para corrosão das suas bases comuns, fazendo com que a esperança de um projeto socialista e democrático verdadeiramente renovador se esgotasse antes mesmo da geração de frutos mais consistentes, espacialmente ampliados e de duração mais longa.
IV
Em sua curta estação expansiva, o eurocomunismo chegou a atrair para as suas propostas socialistas democráticas outros partidos comunistas europeus, como o britânico e o belga, chegando até mesmo a ganhar a simpatia de PCs de outras regiões do planeta, como o japonês e o mexicano. Além disso, não foram poucos os comunistas que aderiram às orientações eurocomunistas, não obstante as desconfianças das suas respectivas direções partidárias, como no caso do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Ademais, três acontecimentos ocorridos na primeira metade de 1976 – todos tendo como protagonista o secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer – ainda podem ser considerados como fazendo parte da sua breve linha de afirmação e ascensão, demonstrando que o discurso eurocomunista possuía uma força propulsora em potencial.

No primeiro, da tribuna do XXV Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em Moscou, no dia 27 de fevereiro, em nome do núcleo de partidos eurocomunistas, Berlinguer sai em defesa das posições assumidas pelos comunistas ocidentais, ao proclamar a luta “por uma sociedade socialista que seja o momento mais alto do desenvolvimento de todas as conquistas democráticas e garanta o respeito de todas as liberdades individuais e coletivas, das liberdades religiosas e da liberdade da cultura, da arte e das ciências”, uma sociedade em que a classe operária realize “a sua função histórica em um sistema pluralista e democrático”.

A propagação de murmúrios indignados entre delegados e convidados, junto à tradução deturpada do adjetivo “pluralista” por “multiforme” (palavra que obviamente não possui o mesmo significado político de “pluralismo”), revela o tamanho aproximado do impacto causado por esta que pode ser considerada a primeira grande afronta do eurocomunismo à ortodoxia soviética, dentro do seu templo oficial.

No segundo, durante o comício conjunto dos Partidos Comunistas Italiano e Francês realizado em Paris, no dia 3 de junho, o mesmo Berlinguer usa o termo eurocomunismo pela primeira vez em público, diferentemente de Georges Marchais, que evita o emprego do neologismo. Então, outra vez mais, o secretário-geral do PCI realiza a descrição da almejada sociedade socialista ocidental, uma sociedade que, diferentemente daquelas existentes nos países do Leste, seria marcada pela existência de liberdade de expressão e de imprensa, pela pluralidade de partidos e alternância no poder.

No terceiro, no decorrer da Conferência dos vinte e nove partidos comunistas europeus realizada, no mês de junho, em Berlim, Berlinguer expõe – na companhia de um decidido Carrillo e de um, outra vez mais, reticente Marchais – uma série de questões abordadas diversamente pelo comunismo soviético e pelo eurocomunismo, deixando claro o anacronismo contido na existência de Estados e partidos-guia: no plano político, o valor fundamental da democracia, do pluralismo e das liberdades individuais e coletivas, com todas as suas implicações – o Estado laico e não-ideológico, a pluralidade partidária, a alternância de poder, a autonomia sindical, a liberdade religiosa e de expressão da cultura, da arte e da ciência; no plano econômico, a convivência e cooperação de formas de gestão e de propriedade públicas e privadas, voltadas para o desenvolvimento produtivo e social.

Entretanto, nem bem completado um biênio de existência, o eurocomunismo encontra o seu “canto de cisne” no exato momento em que se imaginava acontecer o marco que seria responsável pelo seu irresistível desenvolvimento futuro, o desabrochar das suas potencialidades ainda represadas pela inércia da tradição.

Rompendo a prática dos encontros bilaterais, Berlinguer, Carrillo e Marchais reúnem-se em Madri, no dia 3 de março de 1977, com o fito de fortalecer a proposta eurocomunista, tornando-a um projeto mais orgânico, além de prestar solidariedade aos comunistas espanhóis, ainda não reconhecidos na sua plena legalidade.

Porém, desse encontro, de que se esperava um documento mais consistente e articulado – uma espécie de “constituição eurocomunista” –, vem a público um magro comunicado de apenas quatro páginas, que se limitava a reiterar as declarações bilaterais precedentes, e uma série de comentários sobre as desavenças existentes entre os três líderes, com destaque para a existência de uma suposta carta enviada por Leonid Brejnev para Georges Marchais, pressionando-o a bloquear qualquer espécie de crítica mais severa à União Soviética e ao seu partido comunista.

Na verdade, sendo autêntica ou não a versão da carta enviada por Brejnev, uma boa parte das razões que levaram à falência prematura do eurocomunismo, durante o encontro que representaria o seu ápice, deveu-se ao recuo dos comunistas franceses: de um lado, pressionados severamente pelos soviéticos, e, de outro lado, tendo as suas relações com os socialistas de Mitterrand descambado para a crise.

A partir de então, de forma acelerada, cada um dos três PCs (e seus três líderes) refluirá para um caminho próprio, mais imerso em questões de âmbito especificamente nacional.
Marchais e o PCF, preocupados com o forte crescimento dos socialistas liderados por François Mitterrand e, também, com o diálogo amistoso destes com os comunistas italianos, engatam uma marcha à ré, reaproximando-se dos soviéticos.

Carrillo e o PCE, em meio a dificuldades internas ao partido e à luta pela afirmação da tão almejada legalidade, mostrando-se um partido nacional essencialmente espanhol, pisam no acelerador fazendo crescer o tom das polêmicas com os soviéticos.

Berlinguer e o PCI, após o espetacular avanço alcançado nas eleições regionais de junho de 1975 (33,4%) e nas eleições políticas de junho de 1976 (34,4%), começam a enfrentar a prova de fogo da estratégia do compromisso histórico, em meio à impiedosa multiplicação de ações terroristas da extrema-esquerda e da extrema-direita, aos vetos estadunidenses e às constantes desavenças com as diretrizes sinalizadas por Moscou, numa árdua tentativa de realizar na prática as proposições teóricas heterodoxas desenvolvidas há décadas.

Porém, quase como numa tentativa de morrer de pé, gritando em alto e bom som que a causa eurocomunista representava uma alternativa concreta ao progressivo risco de esclerose da causa socialista, dois episódios ocorridos na segunda metade de 1977 sinalizaram claramente o principal adversário daqueles que se bateram juntos, ainda que brevemente, por um socialismo permeado pelos valores da democracia, da liberdade e do pluralismo: o despotismo que tomara conta do socialismo real [28].

Em primeiro lugar, a publicação no verão europeu do polêmico livro de Santiago Carrillo: Eurocomunismo e Estado [29].

Nele, o secretário-geral do PCE põe em dúvida a validade de uma série de teses elaboradas pela tradição comunista, em particular por Lenin, no decorrer da experiência da Revolução Russa, quando cotejadas com a realidade histórica dos países capitalistas desenvolvidos da Europa Ocidental – entre as quais, a identificação entre democracia e Estado burguês, e a defesa da ditadura do proletariado como caminho para se chegar ao estabelecimento do novo sistema social socialista.

Em seu lugar, diferentemente, é proposta uma “via democrática, pluripartidária, parlamentar” ao socialismo, que fosse capaz de transformar o aparelho de Estado através da utilização dos seus espaços ideológicos, da “criação de uma nova correlação de forças através do caminho da luta política, social e cultural”, renunciando à idéia de construção de um Estado operário e camponês controlado rigidamente pelo aparelho partidário. Uma via que, ademais, não poderia deixar “de recuperar para si os valores democráticos e liberais, a defesa dos direitos humanos, incluído o respeito às minorias discrepantes”, mantendo-se independente em relação ao Estado soviético e demais Estados socialistas na sua definição, além de permanentemente crítica ante o “totalitarismo socialista”.

Mas, como se tudo isto não fosse suficiente para aumentar a forte antipatia alimentada pelos soviéticos em relação a sua figura, Carrillo procura mostrar que, assim como democracia não é sinônimo de capitalismo, socialismo não é igual à dominação soviética, cabendo ao eurocomunismo a tarefa de superar esse dilema, pondo “os problemas da democracia e do socialismo no nível histórico correspondente”. Por um lado, demonstrando que, para o desenvolvimento da democracia, é preciso a própria superação do capitalismo, já que este tende a reduzi-la e, no limite, destruí-la. Por outro lado, indicando que:
[...] a vitória das forças socialistas em países da Europa Ocidental não aumentará num instante a potência estatal soviética nem suporá a extensão do modelo soviético do partido único; será uma experiência independente, com um socialismo mais evoluído que terá uma influência positiva na evolução democrática dos socialismos existentes hoje [30].
Em segundo lugar, o célebre discurso de Enrico Berlinguer durante a comemoração dos sessenta anos da Revolução Russa de outubro de 1917, em Moscou.

Então, pela segunda vez num intervalo de apenas um ano, Berlinguer desafia os soviéticos na sua própria casa, diante de nada menos que cento e vinte delegações estrangeiras.

Com um discurso de parcos sete minutos, reduzidos de forma proposital logo após os dirigentes soviéticos tomarem conhecimento do seu teor, o secretário-geral do PCI conseguiu sintetizar a abissal diferença que separava o socialismo real do socialismo almejado pelos comunistas italianos – um socialismo que, entre 1975 e 1977, Berlinguer imaginou ser capaz de ganhar dimensões mais ampliadas através do eurocomunismo.

Assim, ao afirmar que “a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista” [31], Berlinguer fechou com chave de ouro a fugaz tentativa eurocomunista de impulsionar o socialismo para fora do caminho do despotismo, renovando-o com o sopro revolucionário da liberdade.

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Marco Mondaini é professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Este texto também foi publicado em La Insignia.
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Notas
[1] Delogu, Ignazio (a cura di). La via europea al socialismo. Roma: Newton Compton, 1976, p. ix.
[2] Siqueira, Maria Teresa Ottoni. “Introdução ao dossier sobre o eurocomunismo”.Encontros com a Civilização Brasileira, n. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 224.
[3] Hobsbawm, Eric. “O eurocomunismo e a longa transição capitalista”. Ib., p. 226-32.
[4] Duas visões antagônicas, com sinais totalmente contrários, em relação ao processo de socialdemocratização dos partidos eurocomunistas, em especial o PCI, podem ser encontradas em: Salvadori, Massimo. Eurocomunismo e socialismo sovietico. Torino: Einaudi, 1978; e Mandel, Ernest. Crítica do eurocomunismo. Lisboa: Antídoto, 1978. De um lado, Salvadori buscou demonstrar que os eurocomunistas abandonaram o bolchevismo na direção de uma certa socialdemocracia, estando mais próximos de Kautsky que de Lenin e Gramsci, fato que deveria ser levado até as suas últimas conseqüências para o próprio bem do caráter transformador do projeto. Além disso, procurou mostrar que Gramsci não possuía nenhuma continuidade com o projeto reformista de base democrático-pluralista do eurocomunismo, tendo sido “readaptado” para o embasamento teórico deste último. De outro lado, Mandel esforçou-se em dizer, com o linguajar típico da ortodoxia leninista-trotskista, que a socialdemocratização dos PCs eurocomunistas representou nada mais que a adoção de uma política de “colaboração de classe a serviço da burguesia”, voltada para a salvação do próprio capitalismo, em suma, uma deliberada “traição” à causa revolucionária da classe operária.
[5] Rubbi, Antonio. Il mondo di Berlinguer. Roma: Napoleone, 1994, p. 63.
[6] Delogu, Ignazio (a cura di). La via europea al socialismo, cit., p. xxxv.
[7] “Dichiarazione comune del Partito Comunista Spagnolo e del Partito Comunista Italiano”. Ib., p. 53-4.
[8] Ib., p.54.
[9] Ib.
[10] Ib., p. 55.
[11] “Dichiarazione comune del Partito Comunista Francese e del Partito Comunista Italiano”. Ib., p. 56.
[12] Ib., p. 57.
[13] Ib.
[14] Ib., p. 58.
[15] Ib., p. 57.
[16] Ib., p. 60.
[17] Berlinguer, Enrico. “Intesa e lotta di tutte le forze democratiche e popolari per la salvezza e la rinascita dell’Italia”. XIV Congresso del Partito Comunista Italiano – Atti e risoluzioni. Roma: Riuniti, 1975, p. 15-76.
[18] Ib., p. 45-6 (grifo do autor).
[19] Carrillo, Santiago. “Dal rapporto centrale del segretario generale nel ‘Manifesto programa del Partido Comunista de España’”. In: Delogu, Ignazio (a cura di). La via europea al socialismo, cit., p.103-22.
[20] Marchais, Georges. “Una via democrática al socialismo”. Ib., p. 61-99.
[21] A diferenciação entre os conceitos de “sociedade política” e “sociedade civil”, “guerra de movimento” e “guerra de posição”, “Oriente” e “Ocidente”, “coerção” e “consenso”, “dominação” e “hegemonia”, além da apresentação de outros conceitos centrais do pensamento gramsciano, foi feita no primeiro artigo de um livro em preparação.
[22] A construção da “via italiana ao socialismo” dentro do pensamento togliattiano, do seu retorno à Itália em março de 1944 à sua morte em agosto de 1964, foi o tema central da minha tese de doutorado, intitulada Palmiro Togliatti e a construção da via italiana ao socialismo, defendida junto à Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em dezembro de 1998.
[23] Delogu, Ignazio (a cura di). La via europea al socialismo, cit., p. xxviii-xxxiv.
[24] Rubbi, Antonio. Il mondo di Berlinguer, cit., p. 63-6.
[25] Kanapa, Jean. “As características do eurocomunismo”. Encontros com a Civilização Brasileira, n. 4., p. 243-9.
[26] Ib., p. 249 (grifos do autor).
[27] Delogu, Ignazio (a cura di). La via europea al socialismo, cit., p. xxvi e xxvii.
[28] Valentini, Chiara. Berlinguer. L´eredità difficile. Roma: Riuniti, 1997, p. 246-57; Fiori, Giuseppe. Vita di Enrico Berlinguer. Bari: Laterza, 1989, p. 267-73; Rubbi, Antonio. Il mondo di Berlinguer, cit., p. 67-72.
[29] Carrillo, Santiago. Eurocomunismo e Estado. Rio de Janeiro: Difel, 1978.
[30] Ib., p. 32.
[31] Berlinguer, Enrico. “Democrazia, valore universale”. In: Tatò, Antonio (a cura di).Berlinguer. Attualità e futuro. Roma: L´Unità, 1989, p. 29.


Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

A estratégia nacional-libertadora e o reformismo

Um bom estudo sobre a trajetória da esquerda marxista, em especial, do PCB até os anos 90, escrito por Anita Leocádia Prestes.


http://www.ilcp.org.br/prestes/index.php?option=com_content&view=article&id=230:a-estrategia-nacional-libertadora-e-o-reformismo-na-historia-do-pcb&catid=18:artigos&Itemid=140

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A minha autocrítica, o marxismo e a degeneração de muitos comunistas


Aqueles que têm afinidades com o campo de esquerda marxista desejam ardentemente a revolução, ou seja, a transformação desse atual modelo societário para outro modelo, baseado na justiça, na equidade, no bem comum, na democracia popular, na felicidade de todos etc.


Esse “outro modelo” chamamos de socialismo, a fase inicial ou transicional, que irá desembocar no fim do Estado opressor/regulador, ou seja, no comunismo, que é uma sociedade livre (emancipada) e autogerida pelo povo, sem exploração do homem pelo próprio homem.


Esse é o “ABC” do marxismo (traduzido de uma maneira bem simplista, eu reconheço) defendido por muitos na esquerda brasileira e mundial, espalhados em diversos partidos e com clivagens diferentes, por vezes até lutando entre si (o problema da divisão da esquerda marxista fica para outro artigo).


Depois da emblemática queda do muro de Berlim, em 1989, tem-se uma crise de todo o “campo socialista” que gravitava em torno da antiga União Soviética (URSS) e militarmente defendido pelas tropas do Pacto de Varsóvia. Com isso, não somente mostrou-se esgotado aquele modelo de transição pós-capitalista (marcadamente stalinista), mas também colocou-se em dúvida a validade mesma das teorias de Marx e de todo o projeto socialista revolucionário – fazendo uma colagem equivocada entre o “marxismo-leninsimo” dos partidos-Estado com a teoria crítica marxiana e suas possibilidades contemporâneas.


Atualmente, os regimes burocráticos-autoritários comandados por partido único, tal como existe em Cuba, na Coréia do Norte, Vietnam e China, também não motivam as massas trabalhadoras (e nem os intelectuais) como exemplos de uma vida melhor do que o capitalismo democrático burguês, ainda que possamos reconhecer avanços sociais em alguns aspectos. Por onde ir? Onde buscar inspiração?


Muitos debandaram depois do colapso do “socialismo real”, mas alguns ficaram e continuam defendendo a tese de que o capitalismo não é a única e nem a melhor solução para o viver societal humano, basta olhar sua lógica expansionista, concentracionista, excludente, discriminatória e destrutiva. A utopia de um mundo comunista permanece de pé, ainda que tenha perdido enorme terreno simbólico em muitos países. Para a esquerda marxista, o comunismo é a conseqüência lógica da democracia que na sua feição burguesa apresenta limitações óbvias (cf. Yvon Quiniou em “Socialismo, impasses e perspectivas”, Scrita Editoral) .


A questão que se coloca é como mudar esse sistema capitalista, em especial, após a derrocada de um determinado modelo de transição (chamado de socialismo real)?


Alguns irão defender uma mudança societária dentro das “regras do jogo” da democracia liberal (pensando aqui na perspectiva de Norberto Bobbio e sua defesa das “regras democráticas” universais), ou seja, de eleição em eleição, de projeto em projeto, de cargo em cargo, nós vamos pontualmente mudando a sociedade até chegarmos ao “novo modelo”. Chamam isso de caminho democrático para o socialismo, entendendo que a democracia é um valor universal (portanto, não existe essa “velha” dicotomia de democracia burguesa e democracia popular). Esse “caminho democrático” para o socialismo envolveria uma paciência não-autoritária (Adam Przeworski).


O comunismo, pensando como Marx, é a própria radicalização da democracia que no seu aspecto burguês – ao que chamamos de democracias capitalistas ou liberais ou burguesas – apresenta profundos entraves para a democratização do fazer político, da participação, da economia e sua riqueza.


As crises e os conflitos são inúmeros. Nesse sentido, não defendo dicotomias excludentes, mas diferenças substantivas na democracia. No socialismo, caminho para o comunismo, há uma nova democracia que tem o poder popular como sua base e não o controle parlamentar hegemônico da classes empresarias-financeiras com seus representantes, fantoches e lacaios.


Os exemplos históricos até aqui, dessas tentativas de socializar dentro das “regras do jogo democrático” com o controle do grande capital, foram trágicos e não mostraram nenhuma eficácia, do ponto de vista da sua continuidade/estabilidade governamental. O eleitoralismo e o caminho parlamentar “democrático” não se mostrou historicamente uma opção válida de caminho para o socialismo-comunismo, ainda que reconheçamos as diversas vitórias do movimento operário e dos trabalhadores em geral dentro dos marcos dessa democracia eleitoral-parlamentar.


Em geral, as tentativas de um caminho democrático eleitoral para o socialismo tomaram dois rumos históricos concretos:


1- Acabaram em golpe de Estado pelas forças de direita (apoiadas pelo imperialismo internacional) contra esses governos de “caminho democrático” para o socialismo ou derrotas eleitorais manipuladas e apoiadas pelas classes empresariais e países imperialistas (O Chile de Allende e a Nicarágua de Ortega apontam nesse sentido e, em parte, Jango em 1964 no Brasil);


2- Acabaram em oportunismo puro, degeneração dos partidos de esquerda, com os seus líderes e partidos antes socialistas vivendo dentro das benesses do capitalismo burguês e abandonando assim a perspectiva da revolução popular ou transformação societária. O alvo agora passava a ser apenas manter-se e reproduzir-se no poder (governabilidade passa a ser um conceito comum), tornando-se na prática sociais-democratas com a conversa de que “o amanhã a Deus pertence”, portanto, vivamos o hoje e aproveitemos a “vida de príncipe” que o sistema nos proporciona no Parlamento ou em alguns cargos públicos e/ou comissionados.


Um segundo caminho apontado – semelhante ao primeiro, mas com um apelo mais radical – é o chamado “reformismo revolucionário”. Ele abraça com ardente fé a utopia socialista, acredita na revolução, até se diz comunista em alguns casos, mas enquanto o quadro histórico revolucionário não está posto na ordem do dia, vamos então reformando a sociedade burguesa e radicalizando os seus mecanismos democráticos elitistas até um dia chegarmos ao processo revolucionário e mudarmos esse modelo societário no caminho do socialismo. Em geral, gostam muito de citar Antonio Gramsci e seu conceito de hegemonia para assim legitimar sua busca de vitórias pontuais no interior da ordem dominante do capital até “aquele dia” (eu nunca achei Gramsci ou Rosa Luxemburgo reformista, mas...). Sua visão é etapista: Na primeira fase reformas, depois uma insurreição (ou ponto de ruptura) e a revolução que nos levará ao socialismo e com ele ao comunismo.


Semelhante ao primeiro grupo, muitos “reformistas revolucionários“, com o passar do tempo, esqueceram-se da revolução e ficaram apenas com o seu reformismo social-liberal, uma tentativa, por vezes até nobre, de “dar uma face mais humana” ao capitalismo burguês, gerenciado o velho Estado e seus mecanismos ideológicos e repressivos. Renderam-se a lógica do mercado com algumas doses keynesianas de intervenção e sentem-se profundamente satisfeitos com isso. É o possível e quem reclamar é “radical demais”, “esquerdista imbecil” e por aí vai.


Na prática, eles abandonaram a utopia comunista e se aliaram aos sociais-democratas na busca de eternas melhorias intra-sistêmicas, abandonando gradativamente a perspectiva crítica e sua revolução. Mudar para manter, ou seja, as reformas e melhorias no interior da ordem capitalista de mercados monopolistas se tornaram um fim em si mesmo.


Por último, encontramos os resistentes, aqueles que se mantém na crítica ao sistema capitalista tardio e não aceitam um mero reformismo sem perspectivas reais de uma mudança societária. Um outro mundo é possível.


Esses resistentes compreendem que a revolução não é necessariamente um momento isolado ou insurrecional, mas um processo crescente, um caminho ao comunismo, sem etapismos, mas conectados com os movimentos sociais e civis, protagonizado pela classe trabalhadora ampliada (o proletariado) e tendo como norte reflexivo o método de Marx (não sua versão dogmática estatal chamada de “marxismo-leninismo” pelos partidos de Estado no antigo socialismo real). Nesse sentido, o chamado eurocomunismo e o marxismo analítico podem nos fornecer importantes ferramentas reflexivas para a ação política concreta, incluindo é claro a boa tradição gramsciana e mesmo pensadores mais liberais como Norberto Bobbio não podem ser esquecidos.


Os que se colocam no campo revolucionário não são contrários às reformas sociais, econômicas e políticas dentro do sistema capitalista, mas apontam seus limites que, em última estância, nos conduzem ao necessário aprofundamento das mesmas que, aí vem a crise, redunda na ruptura do modelo societário vigente.


Esses revolucionários não temem se autodenominar como comunistas ou simplesmente marxistas e se encontram espalhados/divididos em diversos partidos (dentro do PT, PSB, PPS e do PDT ainda existem alguns isolados, além do PCB, PSOL, PCdoB, PPL, PSTU, AND, PC-ML, etc.) e ainda há outros atuando fora das estruturas partidárias atuais da esquerda brasileira, nos movimentos sociais e estudantis.


Todos esses marxistas que se mantém dentro do paradigma revolucionário – nos marcos de uma teoria crítica – juntos não cabem talvez numa caminhonete, ou seja, “somos todos grupelhos” como dizia Félix Guattarri (ainda que tenhamos profunda conexão com os interesses populares, das amplas maiorias), o que é pior, estamos divididos e fracionados, por vezes uns contra os outros e de uma maneira selvagem, anti-fraterna e estúpida.


Somos uma minoria dentro do atual cenário político, mas, quem disse que a maioria tem sempre razão? Precisamos pensar numa política de frente popular com um programa que não seja apenas uma maquiagem social no velho Estado burguês, mas aponte avanços progressistas, substanciais. É uma construção de médio ou longo prazo, dependendo da dinâmica societária, mas possível.


As minorias ideológicas também fazem história (e podem se transformar em maioria) e o modelo societário capitalista, mesmo que não estando hoje em colapso (mas sim em crise permanente), apresenta pelo menos cinco graves problemas sem solução nos seus marcos econômicos-sociais: o problema ecológico, o problema da riqueza e pobreza (o alargamento das diferenças), suas crises cíclicas, o desemprego estrutural e as questões étnicas (racismo, xenofobia, preconceitos em relação às "sexualidades dissidentes" etc.).


A minha história pessoal começou no PCB dos anos 80, durante a campanha “O PCB é legal” e no apoio a política frentista de consolidação do Estado de Direito Democrático. Depois, para o reformismo puro e simples foi um pulo, onde cheguei até mesmo a flertar com o novo liberalismo, tudo na busca de uma "solução política" pós-Queda do Muro.


Hoje, faço uma profunda autocrítica da minha atuação política e profissional – sou sociólogo formado com ênfase em ciência política. Vejo claramente que a injustiça e a barbárie é o resultado do modelo societário capitalista (mesmo esse sendo o capitalismo tardio ou pós-moderno se preferirem) e não há outro caminho ético-político senão a crítica revolucionária, sem nenhum esquerdismo dogmático e infantil, sabendo aproveitar as brechas sistêmicas para avanços no campo sindical, parlamentar, cultural, político, organizativo, etc.


A teoria crítica tem um enorme patrimônio político-cultural para se repensar no século 21, aproveitando o melhor de Marx, Lenin, Trotsky, Mao, Lukács, Althusser, Gramsci, Rosa Luxemburgo, os teólogos da libertação entre outros. Todos esses pensadores e suas experiências concretas são ricas para construirmos um caminho revolucionário escoimado dos equívocos do passado século 20.


Essa minha “guinada à esquerda” é fruto de quem apostou tudo no reformismo, comemorou a queda dos regimes da URSS e do Leste Europeu (o antigo “campo socialista”) para, no final das contas, perceber que nada mudou, o mundo não ficou melhor por conta disso e quem triunfou foi o capitalismo – que se tornou ainda mais cruel e sem freios diante da ausência de alternativas que servissem de “pressão“.


Com a queda do “socialismo real” não foi o reformismo social-democrático vinculado aos interesses do chamado “mundo do trabalho” (expressão que usávamos muito no PCB dos anos 80) que saiu vitorioso, nem mesmo evoluímos para uma democracia socialista, houve restauração capitalista e maior perda para os trabalhadores e oprimidos do mundo inteiro. O meu otimismo caiu por terra depois da avalanche neoliberal e do reacionarismo que as democracias burguesas assumiram, algumas sob gestão de antigos partidos de “esquerda”.


Tenho profunda consciência de que atuar criticamente dentro dos marcos de uma democracia liberal é muito difícil, pois as estruturas do Estado – sua base econômica ou infra-estrutura e seus aparelhos ideológicos ou superestrutura, duas dimensões que interagem na manutenção sistêmica – são trincheiras de poder que não são tão permeáveis a crítica ou oposição marxista que tem nos trabalhadores seu ator principal (o proletariado), sem contar que enfrentamos uma brutal alienação desses trabalhadores e oprimidos (as classes subalternas, como alguns preferem conceituar) e seu processo de reificação (lembrando aqui de Lukács) é estimulado pela mídia e aparelhos ideológicos correlatos.


O Estado é um aparelho hegemonizado pelos interesses das classes empresariais burguesas (incluindo o latifúndio que se transformou em agro-negócio, apoiado por interesses monopolistas internacionais), ou seja, pelo grande capital globalizado e multifacetado. Ele está funcionalmente à serviço dessas classes dominantes e, se necessário for, mantém o monopólio da força para reprimir todo e qualquer movimento contestatório que ameace o controle dessa elite de poder (C. W. Mills).


Suas leis (todo o seu ordenamento jurídico) e sua chamada “democracia” servem apenas como aparência de justiça “para todos”, de pseudo-liberdade e alternância de poder, pois na prática, sabemos que é um “jogo de cartas marcadas” onde a justiça funciona majoritariamente para os ricos e poderosos e os partidos burgueses mantém sempre a hegemonia no Congresso Nacional e na sociedade civil como um todo, restando aos críticos de esquerda alguns poucos e nebulosos espaços de atuação – que devem ser valorizados e nunca abandonados em nome de um pessimismo recluso, pois a minoria de hoje pode ser maioria amanhã.


Vejamos, como exemplo, as votações no Congresso, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras municipais onde parlamentares marxistas enfrentam derrotas acachapantes diante de uma ampla maioria financiada pelo grande capital. Recentemente, aqui na ALERJ, o projeto Nissan-Sérgio Cabral foi aprovado de maneira servil pelo parlamento estadual, onde todos os destaques de interesse popular ou “mais amplo” foram derrotados pelos lacaios do esquema de 6 bilhões de renúncia fiscal sem contrapartidas sociais ou ambientais


Os aparelhos ideológicos de Estado (parlamento, partidos, mídia, sistemas religiosos conservadores, escolas, sindicatos, família, aparato jurídico, instituições culturais, ONG’s, etc.) interagem com os aparelhos repressivos do Estado (Governo, administração pública, forças armadas, polícias, tribunais, sistema prisional, etc). Enquanto os primeiros atuam através do convencimento (ideologia), os segundos atuam em última instância com a violência repressiva, a garantia última da manutenção da ordem do capital e das classes empresariais.


Com isso, mesmo que um partido de esquerda conquiste um Governo (e aí eu deixarei para outro artigo sobre os problemas eleitorais para a esquerda marxista), ele estará sitiado por toda uma estrutura de poder (repressiva e ideológica) que irá lutar para manter a ordem societária capitalista, o que levará sempre a conflitos, tentativas de sabotagem, instabilidade governamental, etc.


O processo de detonação do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) e do ministro Orlando Silva, que gerou sua queda, é um exemplos simples e ilustrativo.


Não sou favorável a nenhuma corrupção, nem sou membro deste partido, mas, sejamos honestos, por que será que a mídia – financiada com o dinheiro do grande capital e latifundiários – não defende uma CPI dos Bancos? Uma investigação do sistema de comunicação no Brasil e suas relações com o poder econômico-político? O financiamento das campanhas eleitorais?


Destruir com a imagem de um partido com o nome “comunista” é muito mais interessante para esse modelo societário que aí está - contribuindo ainda mais para gerar desesperança entre os trabalhadores - do que realmente acabar com os grandes tubarões da corrupção que mantém/reproduz a ordem burguesa no Brasil.


Por outro lado, sinceramente, não é de hoje que muitos críticos de esquerda apontam um processo de degeneração da direção atual do PCdoB que o transforma, de eleição em eleição, num partido ávido por cargos e postos de poder, consumido pelo eleitoralismo e alianças esquisitas com partidos burgueses e setores de direita, alguns chamados por seus dirigentes de “setores progressistas“ da sociedade brasileira. É triste e comprometedor. Necessário é repensar o PCdoB, sem negar a necessidade de alianças políticas com setores progressistas dentro dos marcos de uma democracia liberal como a nossa.


Pensemos nisso tudo e retornarei com outras reflexões, aguardando o seu comentário.