Giowana Cambrone Araujo*
Marcio Sales Saraiva**
A
entrevista no Programa do Jô Soares, exibida pela TV Globo no dia 30/04/12, foi
com João W. Nery, um dos pioneiros transhomem
no Brasil (nasceu biologicamente mulher e se tornou homem).
Ele mostrou na entrevista sua grande capacidade argumentativa já conhecida
pelo “mundo trans” e com isso apresentou bons resultados que favorecem a visibilidade
trans, lançando luz em pontos obscuros vividos por esta população. O autor de “Viagem
Solitária”, seu último livro, apresentou-se como um intelectual bem articulado
e que merece o respeito de tod@s.
O fato
de ser um transhomem, algo pouco
comum, além de ser um terreno social e cientificamente novo, até mesmo para o
experimentado apresentador, deixou-o perceptivelmente receoso sobre “como” e “o que” perguntar para o João. O quadro da entrevista foi curto e deixou
em nós uma sensação de que o Jô estava “pisando em ovos”, sem emitir muito suas
próprias opiniões, como é de costume nesse talk
show.
Em uma
infeliz afirmação, o João Nery disse que o seu filho “infelizmente optou” em
ser hetero. Primeiro que, a heterossexualidade não é nenhuma infelicidade, para
quem vive bem nela. Segundo que, como bem sabemos e discutimos com a sociedade,
é um equívoco atribuir à sexualidade humana a um mero jogo de escolhas/opções.
Naturalmente, ao longo da vida, manifestamos - mesmo que no nosso íntimo - a
nossa orientação sexual. O que nos cabe optar é somente a forma de vivenciá-la.
E por ser uma questão de foro íntimo, pode-se viver como bem entender, sem necessariamente
exibir ou exteriorizar a verdadeira orientação.
E é
justamente esse equívoco que devemos evitar ao abordar as orientações sexuais,
pois se não queremos cair no determinismo
genético, não podemos precipitadamente abraçar a ideia de livre escolha
diante de um equipamento sexual-cognitivo que nos limita. Nós somos o que podemos ser, não necessariamente
o que gostaríamos, isso quer dizer que nossas escolhas são determinadas,
limitadas, por diversos fatores. As escolhas humanas, incluindo sexualidade,
sofrem múltiplos constrangimentos (sociais, psicológicos, econômicos etc.) que
interferem na liberdade. Nosso contexto histórico-social (vivemos numa
sociedade capitalista) já é uma fonte limitadora de escolhas.
Esse
discurso de "livre escolha" é base dos ataques homofóbicos de Silas
Malafaia, Bolsonaro e tantos outros que apregoam que a sexualidade é uma
questão de escolhas, portanto, gays, lésbicas, trans e bissexuais podem ser “mudados”,
“curados”, pois “bastaria fazer a escolha certa [ser heterossexual]” e se tais não
fazem é porque eles são “doentes, safados, desviados, aliados do mal” e um
monte de baboseiras mais.
Em
outras palavras, se existe “livre escolha” sexual, os homofóbicos dirão que
todas as sexualidades dissidentes representam um livre comportamento imoral e
degradante socialmente. É por isso que devemos ter cuidado e evitar esse tipo
de entendimento da sexualidade como mera opção.
Outra questão que merece muito cuidado é a tal
despatologização do Transtorno de Identidade de Gênero (TIG, F64 no CID 10
– DSM IV), como é conhecido a transexualidade na nosografia psiquiátrica. Pode
parecer um discurso correto, libertário e progressista, mas se a
transexualidade não é um transtorno, o SUS então estaria desobrigado de
cuidados nessa área e aqueles/as trans que dependem exclusivamente do sistema
público de saúde poderiam ficar ainda mais excluídas, especialmente, aqueles/as
que têm origem nas classes subalternas ou setores periféricos ao “mundo do
trabalho”. Além disso, não existe um consenso, nem científico e nem dentro do
campo LGBT, em torno da despatologização. Há muito debate pela frente, pois as
duas características que diagnosticam o trasntorno ainda estão postas na ordem
do dia:
1)
Evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, que
consiste do desejo de ser, ou a insistência do indivíduo de que ele é do sexo
oposto (Critério A).
2) Esta
identificação com o gênero oposto não deve refletir um mero desejo de quaisquer
vantagens culturais percebidas por ser do outro sexo. Também deve haver
evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou uma
sensação de inadequação no papel de gênero deste sexo (Critério B).
Em sua
entrevista, João W. Nery também levantou a questão gravíssima dos ataques
violentos, agressões e assassinatos ocorridos e/ou motivados pela
homofobia/transfobia de alguns indivíduos e/ou grupos sociais. Foi ótimo quando ele falou do disque 100
e frisou a importância da sociedade civil denunciar comportamentos
desrespeitosos, discriminatórios e/ou violentos.
Vale
ressalvar que o livro “Viagem Solitária” é um trabalho autobiográfico, reunindo
as experiências e vivências do autor, da sua transformação, do seu processo de
aceitação pessoal, sofrimentos e relacionamento social-afetivo. Não é por acaso
que João W. Nery é um referência no Brasil para todo o movimento LGBT e para
tod@s que defendem a liberdade, a diversidade e os direitos humanos, mas isso não
transforma-o em porta voz do movimento LGBT, apesar de todo seu maravilhoso engajamento
e militância política nesse sentido.
Sendo
assim, torcemos para que transexuais, bissexuais, travestis, gays, lésbicas, as
“sexualidades dissidentes” da norma heterossexual, possam ganhar espaço
midiático no Brasil e ampliar a luta política por direitos, igualdade e
respeito. A cidadania é para todos e todas. Precisamos radicalizar a democracia
em que vivemos nos marcos da ordem do capital.
* Graduada em Administração e
Direito pelas Faculdades Inesc, especialista em Gestão Cultural, e pós-graduanda
em Direito Constitucional pela Universidade Gama Filho (UGF).
** Sociólogo graduado pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com curso de Teologia básica pela PUC-Rio e
mestrando no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da UERJ.
Veja aqui a entrevista de 22 minutos no Programa do Jô